Tocaia no asfalto é um dos pontos máximos do ciclo baiano de cinema no começo dos anos 1960. A história de um jovem político idealista de Salvador é narrada em paralelo à de um matador que chega do interior com a missão de eliminá-lo. O coronelismo, a violência e a política da época são temas centrais do filme. Os personagens são representados por Geraldo del Rey e Agildo Ribeiro, este num raro papel dramático. O thriller é uma excelente referência sobre questões brasileiras e a própria linguagem audiovisual, ao se aproximar da narrativa do norte-americano D. W. Griffith e da montagem do russo S. M. Eisenstein. A fotografia de Hélio Silva por si só constitui um documento da história do cinema brasileiro. Confira nesta quinta feira (05 de maio) as 19:00 H, na Sessão Repeteco do Cineclube Budega
Em conversa reservada com um coronel, numa cidade qualquer da Bahia, um candidato a governador negocia obras por votos. Mais precisamente, 50 mil votos por quatro açudes. Alguns anos antes, um delegado também negociava pessoas. Para aliviar a superlotação em sua cadeia, oferece uma dezena de presos a outro delegado, no interior de Alagoas. Ele ouve como resposta: “Minha cela é para dez homens e tem mais de 40”. Estamos no início dos anos 1960. Poderia ser o início do século 21.
Pouco (ou quase nada) mudou desde que Tocaia no asfalto bateu nas telas pela primeira vez, em 1962. “Você conhece a Bahia?”, pergunta um agente ao matador de aluguel, logo no início do filme, ao encomendar um serviço no Estado. A frase introduz ao espectador a verdadeira Bahia. Mais que um bom thriller político, a obra prima de Roberto Pires é uma declaração de princípios. A visão do diretor pontua o discurso do amargo pistoleiro Rufino (brilhante atuação de Agildo Ribeiro) e do idealista deputado Ciro (Geraldo Del’Rey). Eles revelam os mecanismos de uma sociedade corrupta em todas as camadas.
Tudo é Brasil, bem Brasil. O filme se desenvolve em dois níveis, dois mundos paralelos. O mundo da alta sociedade contrasta como submundo. As classes são diferentes, mas são muitos os pontos de contato. Há uma crítica dupla aqui. Se os poderosos ditam as regras, isso resulta da apatia daqueles que estão à margem. O personagem de Agildo Ribeiro é o diferencial: embora seja um matador, ele não é frio. O ódio que sente pelo assassinato do irmão tem algo de genuíno, inspira ele uma sensação de injustiça crucial.
Rufino se insere numa longa tradição de anti-heróis, facilmente identificável nos filmes de Nicholas Ray ou Samuel Fuller. Ele não se sente cômodo com padrões e desponta como uma semente de transformação. Por mais que suas motivações pareçam rasas hoje, não se perde o simbolismo. É ele quem quebra a lógica de uma realidade plausível — e atual.
Tocaia no asfalto marca o auge de um cineasta a ser redescoberto. Três anos depois de realizar o primeiro longa-metragem baiano (Redenção, 1959) e no impulso do cultuado A grande feira (1961), ele fez uma insólita ponte entre o cinema policial hollywoodiano e a geração do Cinema Novo, que começava a ganhar espaço com sua postura de confronto. Por trás das boas intenções, há uma proposta estética pulsante, que combina a urgência da temática coma necessidade de criar, de fazer.
As virtudes desse cineasta inquieto saltam aos olhos já na apresentação de Rufino, com uma bela variação de planos. Existe uma espontaneidade intrínseca a ela, a despeito do rigor estilístico. Se chega a ser econômico em outros instantes, Pires jamais deixa de ser claro. Não por acaso, essa crítica ao Brasil coronelista se encerra com outra frase digna de nota. Ao cumprir um serviço, outro matador de aluguel diz: “Um já tá despachado, qual é o próximo?”. Sem mais palavras.
* Atuou no jornal Correio Braziliense como crítico e repórter de cinema, entre 1996 e 2003. Formado em Jornalismo pela Universidade de Brasília, fez especialização em Cinema na Espanha. É curador de mostras audiovisuais e dirigiu sete curtas de ficção, entre eles o premiado A vida ao lado (2006), exibido em 25 festivais no Brasil e no exterior.
Crítica
Gustavo Galvão*Em conversa reservada com um coronel, numa cidade qualquer da Bahia, um candidato a governador negocia obras por votos. Mais precisamente, 50 mil votos por quatro açudes. Alguns anos antes, um delegado também negociava pessoas. Para aliviar a superlotação em sua cadeia, oferece uma dezena de presos a outro delegado, no interior de Alagoas. Ele ouve como resposta: “Minha cela é para dez homens e tem mais de 40”. Estamos no início dos anos 1960. Poderia ser o início do século 21.
Pouco (ou quase nada) mudou desde que Tocaia no asfalto bateu nas telas pela primeira vez, em 1962. “Você conhece a Bahia?”, pergunta um agente ao matador de aluguel, logo no início do filme, ao encomendar um serviço no Estado. A frase introduz ao espectador a verdadeira Bahia. Mais que um bom thriller político, a obra prima de Roberto Pires é uma declaração de princípios. A visão do diretor pontua o discurso do amargo pistoleiro Rufino (brilhante atuação de Agildo Ribeiro) e do idealista deputado Ciro (Geraldo Del’Rey). Eles revelam os mecanismos de uma sociedade corrupta em todas as camadas.
Tudo é Brasil, bem Brasil. O filme se desenvolve em dois níveis, dois mundos paralelos. O mundo da alta sociedade contrasta como submundo. As classes são diferentes, mas são muitos os pontos de contato. Há uma crítica dupla aqui. Se os poderosos ditam as regras, isso resulta da apatia daqueles que estão à margem. O personagem de Agildo Ribeiro é o diferencial: embora seja um matador, ele não é frio. O ódio que sente pelo assassinato do irmão tem algo de genuíno, inspira ele uma sensação de injustiça crucial.
Rufino se insere numa longa tradição de anti-heróis, facilmente identificável nos filmes de Nicholas Ray ou Samuel Fuller. Ele não se sente cômodo com padrões e desponta como uma semente de transformação. Por mais que suas motivações pareçam rasas hoje, não se perde o simbolismo. É ele quem quebra a lógica de uma realidade plausível — e atual.
Tocaia no asfalto marca o auge de um cineasta a ser redescoberto. Três anos depois de realizar o primeiro longa-metragem baiano (Redenção, 1959) e no impulso do cultuado A grande feira (1961), ele fez uma insólita ponte entre o cinema policial hollywoodiano e a geração do Cinema Novo, que começava a ganhar espaço com sua postura de confronto. Por trás das boas intenções, há uma proposta estética pulsante, que combina a urgência da temática coma necessidade de criar, de fazer.
As virtudes desse cineasta inquieto saltam aos olhos já na apresentação de Rufino, com uma bela variação de planos. Existe uma espontaneidade intrínseca a ela, a despeito do rigor estilístico. Se chega a ser econômico em outros instantes, Pires jamais deixa de ser claro. Não por acaso, essa crítica ao Brasil coronelista se encerra com outra frase digna de nota. Ao cumprir um serviço, outro matador de aluguel diz: “Um já tá despachado, qual é o próximo?”. Sem mais palavras.
* Atuou no jornal Correio Braziliense como crítico e repórter de cinema, entre 1996 e 2003. Formado em Jornalismo pela Universidade de Brasília, fez especialização em Cinema na Espanha. É curador de mostras audiovisuais e dirigiu sete curtas de ficção, entre eles o premiado A vida ao lado (2006), exibido em 25 festivais no Brasil e no exterior.
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